Quando a Comunidade Entra na Sala de Aula: O Projeto de Leitura Compartilhada

Colaboradores da Fazenda Roncador se Tornam Parceiros na Formação Leitora

Introdução: Educação como Responsabilidade Coletiva

"Leitura é um ato de amor", costumava dizer a educadora Fanny Abramovich. Mas e quando esse ato de amor é compartilhado por toda uma comunidade? Na Escola Municipal Professora Lúcia Marcondes Machado Penido, a leitura deixou de ser tarefa exclusiva dos educadores para se tornar um projeto coletivo, envolvendo colaboradores da Fazenda Roncador que voluntariamente dedicam seu tempo para ler com as crianças do 1º ao 5º ano.

Essa iniciativa, articulada pelas professoras Sandra Sousa e Ana Cláudia Melo, transcende a prática pedagógica tradicional e materializa um princípio fundamental: a educação é missão de todos. Este artigo apresenta como essa experiência tem fortalecido não apenas a competência leitora dos estudantes, mas também os laços entre escola e comunidade.

Por que a Leitura Compartilhada é Tão Potente?

A ciência da leitura demonstra que a exposição a diferentes modelos de leitores é fundamental para o desenvolvimento da fluência e do gosto pela leitura. Quando um mecânico, uma cozinheira ou um operador de máquinas agrícolas entram na sala de aula para ler com as crianças, eles não apenas compartilham textos – compartilham modos de ser leitor. Cada voluntário traz consigo uma história de vida, uma relação particular com a palavra escrita, um jeito próprio de dar voz ao texto. Essa diversidade é pedagógica por natureza.

O que a BNCC diz sobre isso?

A Base Nacional Comum Curricular, ao tratar do eixo Leitura/Escuta em Língua Portuguesa, estabelece que as práticas de leitura devem ampliar o letramento, possibilitando a participação significativa e crítica nas diversas práticas sociais permeadas pela oralidade, pela escrita e por outras linguagens (BRASIL, 2018).

Petit (2009), antropóloga francesa dedicada aos estudos sobre leitura, afirma que a presença de mediadores de leitura é decisiva para que crianças e jovens descubram o prazer de ler. No contexto rural, onde muitas vezes os livros e práticas letradas são menos presentes no ambiente familiar, a presença de adultos da própria comunidade como mediadores ganha importância ainda maior. É uma mensagem poderosa: ler não é coisa de "gente da cidade" ou de "doutor" – é prática de gente como nós.

Como Funciona o Projeto na Prática?

O projeto acontece semanalmente, com cronograma previamente estabelecido entre escola e Fazenda Roncador. As professoras Sandra e Ana Cláudia selecionam os textos adequados a cada turma, definem os objetivos pedagógicos específicos e agendam os voluntários respeitando suas rotinas de trabalho.

Cada voluntário passa por uma breve orientação sobre a turma, recebe o livro ou texto escolhido e algumas dicas simples de mediação. No momento da leitura, trabalha com pequenos grupos de quatro a seis estudantes durante 30 a 40 minutos, em ambiente acolhedor preparado com tapetes, almofadas e cantinho de leitura.

Diferentes Modalidades de Leitura

O projeto contempla várias formas de leitura, todas alinhadas às orientações da BNCC. A leitura deleite acontece sem cobranças, apenas pelo prazer, desenvolvendo a habilidade EF15LP15 de reconhecer que os textos literários fazem parte do mundo do imaginário. Na leitura compartilhada, voluntário e criança leem juntos, trabalhando a EF15LP01 sobre identificar a função social de textos diversos. As rodas de conversa após a leitura mobilizam a EF15LP02, estabelecendo expectativas em relação ao texto. E na leitura autônoma, o estudante lê para o voluntário, consolidando a EF35LP01 de ler e compreender silenciosamente.

Os voluntários também trazem textos de suas áreas – manuais técnicos, receitas, notícias sobre agricultura – ampliando o contato com gêneros textuais diversos e mostrando que a leitura está presente em todos os contextos profissionais.

Os Impactos Visíveis: O que Mudou?

No Desenvolvimento dos Estudantes

As professoras relatam progressos significativos na fluência leitora, especialmente entre estudantes inicialmente resistentes. A presença de um "novo leitor" gera motivação extra. O repertório de leitura se ampliou consideravelmente, e muitos estudantes passaram a se ver como leitores capazes, especialmente ao perceberem que adultos da comunidade valorizam essa competência. As rodas de conversa após a leitura fortalecem a capacidade de argumentação e escuta ativa.

Esses impactos dialogam diretamente com as Competências Gerais da BNCC, especialmente a Competência 1, que trata da valorização dos saberes locais; a Competência 4, sobre desenvolvimento da expressão oral e escrita; e a Competência 9, referente à convivência respeitosa e solidária.

Na Relação Escola-Comunidade

A escola deixou de ser "aquele prédio ali" para se tornar "nosso espaço de todos". Os voluntários se sentem parte do projeto educativo, desenvolvendo sentimento de pertencimento. A comunidade passa a compreender melhor a complexidade do trabalho pedagógico ao vivenciar, mesmo que por breves momentos, os desafios da mediação de leitura.

O projeto cria pontes importantes: saberes escolares dialogam com saberes do trabalho, da vida, da experiência. A educação deixa de ser "problema da escola" para se tornar compromisso coletivo. Como afirma Brandão (2007), ninguém escapa da educação, pois ela acontece em casa, na rua, na igreja ou na escola.

Diálogos com Paulo Freire: Leitura de Mundo e Leitura da Palavra

O Projeto de Leitura Compartilhada encarna um dos conceitos mais potentes de Paulo Freire: a relação indissociável entre leitura de mundo e leitura da palavra. Para Freire (1989), a leitura não começa na decodificação de letras, mas na capacidade de ler criticamente a realidade.

Quando um operador de máquinas agrícolas lê com as crianças um texto sobre plantio, ele não apenas ensina a decifrar palavras – ele ensina a ler o mundo do trabalho, a compreender os processos produtivos, a valorizar o conhecimento técnico. Essa integração entre diferentes leituras (do mundo e da palavra) torna a aprendizagem significativa – conceito que Ausubel (2003) define como a conexão entre novos conhecimentos e aquilo que o estudante já sabe.

Desafios e Estratégias em Construção

Como todo projeto vivo, a Leitura Compartilhada também enfrenta desafios. Conciliar a rotina de trabalho dos voluntários com os horários escolares exige flexibilidade de ambos os lados. Alguns voluntários manifestam insegurança inicial, perguntando: "Será que estou fazendo certo?". E há sempre a preocupação com a sustentabilidade: como garantir a continuidade sem depender apenas da boa vontade de poucos?

A equipe tem construído estratégias para enfrentar esses desafios. O cronograma é flexível, adaptando-se aos períodos de safra e entressafra. Encontros trimestrais de formação permitem trocas de experiências entre os voluntários. O reconhecimento institucional acontece através de certificados de participação, registros fotográficos e menção honrosa em eventos escolares. E o projeto tem crescido gradualmente, com convites a outras famílias e instituições locais.

Vozes da Comunidade: O que Dizem os Envolvidos

Um operador de máquinas agrícolas de 38 anos, voluntário há quatro meses, compartilha: "No começo fiquei com medo de não saber ler direito pras crianças. Mas a professora me disse que era só ler com carinho, do jeito que eu soubesse. E foi muito bom! As crianças prestam atenção, fazem perguntas, querem saber mais. Me senti importante, sabe? Como se eu tivesse ajudando de verdade no futuro delas."

Maria Eduarda, 8 anos, do 3º ano, resume a experiência com simplicidade poderosa: "Eu gosto quando o tio Marcos vem ler com a gente. Ele trabalha na roça igual meu pai. Aí eu vi que quem trabalha na roça também lê livro!"

A professora Ana Cláudia Melo observa: "O projeto mudou a dinâmica da sala de aula. As crianças ficam ansiosas esperando o dia da leitura com os voluntários. E o mais lindo é ver como elas se identificam com essas pessoas da comunidade. É uma lição de pertencimento."

Alinhamento com a Educação do Campo

O Projeto de Leitura Compartilhada dialoga diretamente com os princípios da Educação do Campo, movimento pedagógico que defende escolas enraizadas em seus territórios. Segundo Caldart (2012), um dos princípios fundantes é uma educação que se organiza desde os sujeitos do campo, suas organizações, seus conhecimentos, sua cultura, seus modos de relacionar-se com o tempo, a terra e o ambiente.

Ao trazer trabalhadores rurais para dentro da sala de aula como mediadores de leitura, o projeto valoriza os saberes locais, reconhece a comunidade como educadora, fortalece a identidade territorial e rompe com a lógica de que conhecimento válido vem apenas de fora.

Perspectivas Futuras: Caminhos para Crescer

O projeto tem potencial para se expandir em diferentes direções. No curto prazo, a meta é ampliar o número de voluntários, incluir familiares dos estudantes como mediadores e criar um clube de leitura envolvendo trabalhadores da fazenda.

Para o médio prazo, planeja-se estabelecer parceria com a biblioteca municipal para acesso a mais títulos, produzir um pequeno guia do mediador voluntário e realizar evento anual de celebração da leitura com apresentações dos estudantes.

A longo prazo, a equipe deseja institucionalizar o projeto no PPP da escola, expandir a experiência para outras escolas rurais do município e criar rede de trocas entre projetos similares da região.

Conclusão: A Comunidade que Lê Junto, Cresce Junto

O Projeto de Leitura Compartilhada nos ensina algo fundamental: educação de qualidade não é assunto exclusivo de especialistas, mas compromisso de uma comunidade inteira. Quando colaboradores da Fazenda Roncador entram na sala de aula, eles não estão apenas "ajudando a escola" – estão exercendo um direito e um dever de participação na formação das novas gerações.

Para os estudantes, a presença desses mediadores é uma lição poderosa: leitura não é privilégio de poucos, mas ferramenta de todos. Lê quem trabalha na roça, quem opera máquinas, quem cozinha, quem cuida. Ler é verbo que se conjuga em primeira pessoa do plural: nós lemos.

As professoras Sandra e Ana Cláudia, ao articularem essa parceria, demonstram compreensão profunda de algo que Paulo Freire sempre defendeu: educação libertadora é aquela que reconhece e valoriza os saberes que os estudantes e suas comunidades já possuem.

Que outros territórios se inspirem nessa experiência. Que outras escolas descubram que, ao seu redor, há uma comunidade inteira pronta para ser parceira. E que sigamos, juntos, provando que a comunidade que lê junto, cresce junto.

Referências

AUSUBEL, D. P. Aquisição e retenção de conhecimentos: uma perspectiva cognitiva. Lisboa: Plátano, 2003.

BRANDÃO, C. R. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2007.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília: MEC, 2018.

CALDART, R. S. Educação do Campo. In: CALDART, R. S. et al. (Orgs.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro: Expressão Popular, 2012.

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados/Cortez, 1989.

PETIT, M. A arte de ler: ou como resistir à adversidade. São Paulo: Editora 34, 2009.