Matemática que Acontece na Vida Real

Quando o Mercadinho se Transforma em Sala de Aula

Uma Manhã Diferente

Em uma manhã especial, os estudantes do 2º e 3º anos da Escola Municipal Professora Lúcia Marcondes Machado Penido saíram da sala de aula com uma missão.

A professora Sandra Sousa os levaria ao mercadinho da Vila da Fazenda Roncador para uma experiência que transformaria a matemática em algo palpável, real e significativo.

Não seriam apenas compradores. Seriam investigadores matemáticos, exploradores de formas, leitores críticos de informações. Seriam, acima de tudo, aprendizes ativos de conhecimentos que fazem sentido na vida.

Esta é a história de como teoria e prática se encontraram nas prateleiras de um mercadinho e transformaram o aprendizado das crianças.

Por que Sair da Escola para Aprender?

Antes de conhecermos os detalhes dessa experiência, é importante compreender o fundamento pedagógico que a sustenta.

A Base Nacional Comum Curricular é clara ao estabelecer que a aprendizagem deve ser contextualizada e significativa. Não basta apresentar conceitos abstratos. É preciso conectá-los com situações reais da vida dos estudantes.

Como afirma Paulo Freire (1996), "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção". Quando a professora Sandra leva seus estudantes ao mercadinho, ela está criando exatamente isso: possibilidades para que eles construam conhecimento de forma ativa.

Piaget (1976) já demonstrava que a aprendizagem acontece pela ação. A criança aprende fazendo, experimentando, tocando, vivenciando. O mercadinho oferece todas essas possibilidades.

A Preparação: Organizando a Expedição de Aprendizagem

Antes de sair da escola, a professora Sandra preparou cuidadosamente cada detalhe.

Explicou aos estudantes que não seria apenas um passeio. Seria uma atividade de investigação matemática. Cada um teria missões específicas a cumprir.

Distribuiu pequenos cadernos de anotações. Organizou as crianças em duplas, para que pudessem colaborar e aprender umas com as outras. Conversou sobre as regras de comportamento no espaço público e no estabelecimento comercial.

A expectativa era palpável. As crianças já previam que seria diferente de qualquer aula que já haviam tido.

Primeira Descoberta: O Sistema Monetário Brasileiro

Ao chegarem ao mercadinho, a primeira missão começou.

Reconhecendo o Dinheiro

A professora distribuiu quantias variadas para cada dupla. Algumas receberam R$ 8,00, outras R$ 10,00. O dinheiro era real: cédulas e moedas do sistema monetário brasileiro.

"Quem tem aqui moeda de 50 centavos? E de 1 real? Alguém recebeu nota de 5 reais?"

As crianças manipularam o dinheiro, observaram as características de cada cédula e moeda, organizaram os valores.

Essa atividade trabalha diretamente a habilidade EF02MA20 da BNCC: "estabelecer a equivalência de valores entre moedas e cédulas do sistema monetário brasileiro para resolver situações cotidianas".

Planejando as Compras

Cada dupla recebeu uma pequena lista de compras. Precisavam comprar dois ou três itens específicos.

Mas havia um desafio: o dinheiro era limitado. Precisavam verificar os preços, calcular o total e conferir se o valor que tinham seria suficiente.

"Professora, o suco custa R$ 4,50 e a bolacha R$ 3,00. Tenho R$ 8,00. Vai dar?"

Era a educação financeira acontecendo de forma natural. Planejamento, cálculo, tomada de decisão.

Calculando e Recebendo o Troco

No caixa, o momento mais esperado. Pagar e receber o troco.

"Minhas compras deram R$ 7,50. Paguei com R$ 10,00. Quanto vou receber de volta?"

A operação de subtração ganhava sentido concreto. E quando o troco vinha em moedas variadas, era preciso conferir se estava correto.

"Recebi uma moeda de R$ 2,00 e uma de R$ 0,50. Isso está certo, professora?"

Essas situações desenvolvem a habilidade EF03MA24: "resolver e elaborar problemas que envolvam a comparação e a equivalência de valores monetários do sistema brasileiro em situações de compra, venda e troca".

Segunda Descoberta: Geometria nas Embalagens

Enquanto escolhiam os produtos, uma nova missão foi lançada.

Caçadores de Formas

"Vamos procurar as formas geométricas escondidas nas embalagens!"

As crianças se transformaram em detetives da geometria.

"Achei um cilindro!" — gritou Pedro, segurando uma lata de milho.

"Aqui tem um prisma retangular!" — completou Maria, mostrando uma caixa de leite.

"E esse é uma esfera!" — disse João, com uma laranja na mão.

As prateleiras do mercadinho viraram um museu de geometria espacial. Cilindros, cubos, prismas, esferas — todos ali, ao alcance das mãos.

Por que Isso é Importante?

A BNCC estabelece na habilidade EF02MA14 que os estudantes devem "reconhecer, nomear e comparar figuras geométricas espaciais (cubo, bloco retangular, pirâmide, cone, cilindro e esfera), relacionando-as com objetos do mundo físico".

O problema de ensinar geometria apenas com desenhos no quadro é que as figuras espaciais têm volume, profundidade, peso. Precisam ser tocadas, manipuladas, observadas de diferentes ângulos.

Como explica Lorenzato (2006), pesquisador em Educação Matemática, "é imprescindível que a criança manipule objetos, pois é por meio da ação sobre eles que ela constrói as primeiras noções geométricas".

No mercadinho, as crianças não apenas viram desenhos de cilindros. Seguraram cilindros reais, perceberam sua estrutura, compararam cilindros de tamanhos diferentes.

Registrando as Descobertas

A professora pediu que cada dupla desenhasse ou anotasse pelo menos três formas diferentes encontradas.

"Desenhei a lata de milho e escrevi: cilindro!"

"Eu desenhei a caixa de suco e coloquei: prisma!"

Esse registro consolida o aprendizado e permite retomá-lo depois na sala de aula.

Terceira Descoberta: Peso e Volume

Uma nova pergunta surgiu enquanto as crianças comparavam produtos.

Litro ou Quilo?

"Este produto é medido em quê? Em litro ou em quilo?"

As crianças começaram a investigar os rótulos.

"Suco é litro porque é líquido!"

"Arroz é quilo porque não derrama!"

"E óleo? É litro também!"

A professora aproveitou para aprofundar:

"O que mais é medido em litros?"

"Leite, refrigerante, água!"

"E o que mais é medido em quilos ou gramas?"

"Feijão, açúcar, farinha!"

Compreendendo a Diferença

As crianças foram percebendo padrões. Produtos líquidos geralmente são medidos em litros (unidade de volume). Produtos sólidos costumam ser medidos em quilos ou gramas (unidade de massa).

A professora mostrou que um litro de óleo e um litro de água ocupam o mesmo espaço (mesmo volume), mas têm pesos diferentes (massa diferente).

Pegou uma lata pequena de massa de tomate (200g) e uma garrafa grande de refrigerante (2 litros). Deixou que as crianças segurassem.

"Qual é maior? Qual pesa mais?"

Foi um momento rico de exploração das diferenças entre tamanho, peso e volume.

Habilidades Desenvolvidas

Essas descobertas trabalham as habilidades:

EF03MA20: "estimar e medir capacidade e massa, utilizando unidades de medida não padronizadas e padronizadas mais usuais (litro, mililitro, quilograma, grama e miligrama)".

EF03MA21: "comparar, visualmente ou por superposição, áreas de faces de objetos, de figuras planas ou de desenhos".

Quarta Descoberta: Leitura Crítica de Informações

Um momento importante aconteceu quando a professora chamou atenção para algo que muitas vezes passa despercebido.

A Data de Validade

"Alguém sabe por que precisamos olhar a data de validade?"

"Para não comprar produto vencido!"

"Para não passar mal!"

"Minha mãe sempre olha isso!"

A professora mostrou diferentes formas de apresentar a validade:

→ Validade: 15/12/2025
→ Válido até 15/12/2025
→ Consumir até 15/12/2025
→ Fabricação: 15/06/2025 / Validade: 12 meses

"Como saber se este produto está vencido?"

As crianças precisaram olhar o calendário, identificar a data atual, comparar com a data do rótulo.

Era leitura, interpretação, raciocínio lógico, cuidado com a saúde — tudo integrado.

Outras Informações nos Rótulos

A professora aproveitou para chamar atenção para outras informações:

→ Ingredientes
→ Informações nutricionais
→ Modo de conservação
→ Peso líquido
→ Origem do produto

"Alguém consegue descobrir de onde vem esse produto?"

"Aqui está escrito: Produzido em São Paulo!"

Era geografia integrada à matemática, à leitura, à ciência.

O Retorno à Escola: Sistematizando as Aprendizagens

De volta à sala de aula, o trabalho continuou.

Roda de Conversa

A professora reuniu todos para compartilharem suas experiências.

"O que vocês aprenderam hoje?"

"Eu aprendi a calcular o troco!"

"Eu descobri que lata é cilindro!"

"Eu vi que tem que olhar a validade senão pode estar vencido!"

Cada criança teve oportunidade de falar. A professora valorizou todas as descobertas.

Registro no Caderno

Depois, fizeram o registro formal da experiência.

Cada dupla criou uma página especial no caderno com:

→ Lista de produtos que compraram
→ Preço de cada item
→ Total gasto
→ Troco recebido
→ Desenhos das formas geométricas encontradas
→ Produtos medidos em litro
→ Produtos medidos em quilo
→ Informações importantes dos rótulos

Esse registro cumpre função importante: organiza o pensamento, consolida o aprendizado, cria memória da experiência.

Criando Novos Problemas

A professora utilizou a experiência para criar novos problemas matemáticos nos dias seguintes:

"Se Maria gastou R$ 7,50 e Pedro gastou R$ 6,00, quem gastou mais? Quanto a mais?"

"João encontrou 3 produtos em formato de cilindro e Ana encontrou 5. Quantos cilindros encontraram juntos?"

"No mercadinho há 8 produtos medidos em litro e 12 medidos em quilo. Quantos produtos ao todo?"

A experiência concreta virou fonte inesgotável de situações-problema significativas.

Por que Essa Abordagem Interdisciplinar Funciona?

Conhecimento Integrado

Na vida real, os conhecimentos não vêm separados em caixinhas. Quando vamos ao mercado, usamos matemática, leitura, ciências, geografia — tudo ao mesmo tempo.

Fazenda (2008), principal referência brasileira em interdisciplinaridade, explica que "a interdisciplinaridade não se ensina, não se aprende, apenas vive-se, exerce-se".

Foi exatamente isso que aconteceu no mercadinho. A interdisciplinaridade não foi forçada. Emergiu naturalmente da própria situação.

Aprendizagem Significativa

Ausubel (2003) demonstrou que aprendemos melhor quando conseguimos conectar novos conhecimentos com experiências que já temos.

Ir ao mercado é experiência familiar para todas as crianças. Transformar essa experiência cotidiana em momento de aprendizagem intencional cria as condições para compreensão profunda.

Desenvolvimento de Múltiplas Competências

A atividade mobilizou várias Competências Gerais da BNCC:

Competência 1 (Conhecimento): Valorização e utilização de conhecimentos matemáticos, linguísticos e científicos.

Competência 2 (Pensamento Científico): Investigação, análise, comparação, formulação de hipóteses.

Competência 4 (Comunicação): Leitura de rótulos, expressão oral das descobertas, registro escrito.

Competência 7 (Argumentação): Justificativa das escolhas de compra, defesa de opiniões sobre produtos.

Competência 10 (Responsabilidade): Educação financeira, consumo consciente, atenção à validade e conservação de alimentos.

Educação do Campo: Valorizando o Território

Para estudantes que vivem no campo, essa atividade tem significado ainda mais profundo.

O mercadinho da Vila da Fazenda Roncador não é apenas um estabelecimento comercial. É parte da identidade territorial, do cotidiano da comunidade, da cultura local.

Caldart (2012) nos ensina que a Educação do Campo deve partir da realidade dos sujeitos do campo, valorizando seus espaços, suas práticas, sua forma de viver.

Ao transformar o mercadinho local em espaço de aprendizagem, a professora Sandra:

→ Valoriza o território
→ Fortalece o pertencimento
→ Mostra que aprendizagem acontece em múltiplos espaços
→ Conecta escola e comunidade
→ Reconhece os saberes locais

As crianças aprendem que não precisam sair do campo para ter acesso a educação de qualidade. A educação está ali, ao alcance, no próprio território que habitam.

Como Replicar Essa Experiência?

Inspirado pela experiência da professora Sandra? Veja como você pode desenvolver atividade similar:

1. Planejamento Prévio

Escolha um mercadinho, mercearia ou mercado próximo à escola. Converse com o proprietário, explique os objetivos pedagógicos. A maioria fica feliz em colaborar.

Defina claramente quais conteúdos você quer trabalhar. Liste os objetivos de aprendizagem.

Prepare material de apoio: cadernos de anotação, lápis, lista de missões para as crianças.

2. Preparação dos Estudantes

Antes de sair, trabalhe em sala os conceitos básicos: reconhecer dinheiro, formas geométricas espaciais, unidades de medida, leitura de rótulos.

Explique as regras de comportamento no espaço público e no estabelecimento.

Organize duplas ou pequenos grupos. Crianças aprendem muito umas com as outras.

3. Defina as Missões

Crie um roteiro claro do que as crianças devem observar e fazer:

→ Comprar produtos específicos dentro de um valor determinado
→ Encontrar pelo menos 3 formas geométricas diferentes
→ Identificar 2 produtos medidos em litro e 2 em quilo
→ Verificar data de validade de pelo menos um produto
→ Registrar descobertas no caderno

4. Durante a Atividade

Acompanhe os grupos, mas dê autonomia. Intervenha apenas quando necessário.

Faça perguntas provocadoras que estimulem o pensamento: "Por que você acha que...?", "Como você pode descobrir...?", "O que aconteceria se...?"

Registre tudo: fotos, vídeos, anotações das falas das crianças.

5. Sistematização

De volta à escola, promova roda de conversa. Valorize todas as descobertas.

Faça registro formal no caderno. Isso organiza o pensamento e cria memória da experiência.

Use a experiência concreta para criar novos problemas matemáticos nos dias seguintes.

Desafios e Aprendizados da Professora

A professora Sandra compartilha algumas reflexões sobre a experiência:

Desafio 1: Gestão do Grupo
Manter a atenção de todos em espaço aberto e estimulante exige planejamento. A solução foi organizar duplas com missões específicas.

Desafio 2: Tempo
É preciso tempo suficiente para que todos realizem as atividades sem pressa. A professora reservou toda uma manhã.

Desafio 3: Segurança
Combinar antecipadamente com o estabelecimento, contar com apoio de outros profissionais da escola, estabelecer regras claras.

Aprendizado Principal:
"Vi nos olhos das crianças um brilho diferente. Elas estavam aprendendo de verdade, fazendo conexões reais. Vale muito a pena sair da zona de conforto da sala de aula!"

Conclusão: Quando Teoria e Prática se Encontram

A experiência no mercadinho da Vila da Fazenda Roncador nos ensina algo fundamental sobre educação de qualidade.

Não basta ensinar conceitos abstratos desconectados da realidade. É preciso criar pontes entre o conhecimento escolar e a vida vivida.

A professora Sandra Sousa construiu essas pontes. Mostrou que matemática não é apenas números no caderno. É ferramenta para resolver problemas reais. É forma de compreender o mundo.

Mostrou que geometria não é apenas figuras no livro didático. Está ali, nas embalagens, nos objetos que tocamos todos os dias.

Mostrou que educação financeira não é assunto apenas para adultos. Desde cedo, crianças podem aprender a planejar, calcular, fazer escolhas conscientes.

E mostrou que escola e comunidade podem caminhar juntas, transformando o território em espaço de aprendizagem.

Como diz Freire (1996), "ensinar exige a convicção de que a mudança é possível". A professora Sandra acredita nessa mudança. E está criando, aula após aula, experiência após experiência, as condições para que seus estudantes desenvolvam plenamente suas potencialidades.

Que outras escolas se inspirem. Que outros educadores ousem transformar o entorno em sala de aula. Que continuemos provando que aprender pode ser significativo, prazeroso e profundamente conectado com a vida.

Referências

AUSUBEL, David P. Aquisição e retenção de conhecimentos: uma perspectiva cognitiva. Lisboa: Plátano, 2003.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília: MEC, 2018.

CALDART, Roseli Salete. Educação do Campo. In: Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro: Expressão Popular, 2012.

FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. O que é interdisciplinaridade? São Paulo: Cortez, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

LORENZATO, Sergio. Educação infantil e percepção matemática. Campinas: Autores Associados, 2006.

PIAGET, Jean. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.